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Instituto Justiça Fiscal debate sistema tributário

Menos imposto sobre o consumo, que pesa igualmente sobre ricos e pobres, e maior taxação da renda e patrimônio, é um dos caminhos apontados

Os principais entraves políticos e estruturais para a construção de um sistema tributário mais justo foram debatidos pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF) semana passada (29.04), no Plenarinho da Assembleia Legislativa de Porto Alegre.

A tributação sobre o consumo é muito elevada, observou o palestrante Raul Pont, deputado estadual pelo RS, ao fazer um breve apanhado dos principais tributos incidentes sobre patrimônio, consumo e renda no país. Pont informou que as receitas decorrentes dos tributos sobre patrimônio correspondem a menos de 4% do total arrecadado, e referem-se principalmente a IPTU e IPVA. Há uma grande resistência para avançar na progressividade do IPTU, que levaria os detentores de propriedades valiosas a pagar mais, afirmou o ex-prefeito de Porto Alegre (1997-2001). Também o Imposto Territorial Rural (ITR) é extremamente baixo. Tudo isso faz com que a arrecadação recaia ainda mais sobre o consumo, que tributa igualmente pobres e ricos.

É indispensável fazer uma revisão do pacto federativo, sustentou o palestrante Germano Rigotto, ex-governador do RS (2003-2007). “Não é possível ter vinte e sete legislações de ICMS no país”, afirmou. Para ele, é necessário que nos preocupemos também com o clientelismo, a corrupção e a disputa por verbas no orçamento e nas emendas parlamentares, tendo em vista a centralização dos recursos na União. E ainda que, ao falar de reforma tributária, falemos em reforma fiscal, pois a política das altas taxas de juros compromete o desempenho do país.

Já a ex-deputada Luciana Genro referiu-se à questão primordial de quem financia o Estado brasileiro. Segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida, 52% dos recursos são oriundos do trabalho e do consumo, enquanto a parcela que vem do patrimônio é de apenas 4%, e de 15% a que vem do capital financeiro. Ou seja, há uma extrema iniquidade na distribuição do ônus público. Ademais, é preciso saber para onde vai o dinheiro arrecadado. E aí se insere o problema da divida pública, que é mais uma forma de os bancos – que pagam os menores impostos no Brasil – se apropriarem dos recursos públicos.

Um conjunto de regras tributárias beneficiam o capital em detrimento do cidadão – lembrou a ex-deputada. Como, por exemplo, a dedução de juros sobre capital próprio: uma espécie de ficção, na qual quem tem capital para financiar o seu investimento faz uma projeção dos juros que pagaria se tomasse um empréstimo, e, sobre os juros que pagaria, não paga imposto. Outro aspecto é a isenção tributária sobre as exportações, que trouxe prejuízos gigantescos ao Rio Grande do Sul. Indo mais além, temos a não cobrança de IPVA sobre helicópteros, jatinhos e lanchas e a não regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto na Constituição de 1988.

“O desafio subjacente aos movimentos ocorridos em junho passado é o de poder oferecer aos manifestantes e à sociedade novas alternativas, que estejam mais dispostas a avançar para além dos limites que o capital nos impõe”, afirmou Luciana.

Nosso modelo tributário não está de acordo com a Constituição, e não seriam necessárias muitas alterações para construir uma sociedade mais humana, justa e igualitária – afirmou o palestrante Marciano Buffon, professor de direito da Unisinos.

Buffon apresentou seis ideias para mudar o sistema tributário: a exoneração tributária do mínimo existencial (imunidade frente a impostos, taxas ou contribuições), seja pela desoneração da contribuição previdenciária para quem ganha salário mínimo, seja pela exoneração dos produtos da cesta básica; inversão do peso da tributação sobre consumo, patrimônio e renda; fim da exoneração dos tributos sobre exportação de recursos naturais; tributação da renda advinda de transações comerciais efetuadas pelas igrejas que nada tenham a ver com a liberdade de culto; enfrentar o problema da substituição tributária; e efetivar a aceitação social do tributo, tendo em vista que muitas vezes o discurso (ser a favor dos tributos) contraria as ações (não pagamento, sonegação, evasão de impostos).



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Inglaterra: a impunidade exemplar

HSBC lavou 880 bilhões de dólares de cartéis de droga do México e da Colômbia. Presidente do banco tornou-se ministro do governo inglês e ingressou na Câmara dos Lordes. Por Eric Toussaint, na Carta Maior

O caso do banco britânico HSBC constitui um caso exemplar da doutrina «demasiado grandes para serem encarcerados». Em 2014, o grupo mundial HSBC emprega 260.000 pessoas, está presente em 75 países e declara 54 milhões de clientes.

No decurso da última década, o HSBC colaborou com os cartéis da droga do México e da Colômbia – responsáveis por (dezenas de) milhares de assassinatos com armas de fogo – na lavagem de dinheiro num montante de cerca de 880 bilhões de dólares.

As relações comerciais do banco britânico com os cartéis da droga perduraram, apesar das dezenas de notificações e avisos de diversas agências governamentais dos EUA (entre as quais o OCC - Office of the Comptroller of the Currency).

Os lucros obtidos não só levaram o HSBC a ignorar os avisos, mas, pior ainda, a abrir balcões especiais no México, onde os narcotraficantes podiam depositar caixas cheias de dinheiro líquido, para facilitar o processo de lavagem.

Apesar da atitude abertamente provocatória do HSBC contra a lei, as consequências legais da sua colaboração direta com as organizações criminais foram praticamente nulas. Em dezembro de 2012, o HSBC teve de pagar uma multa de 1,9 bilhão de dólares – o que equivale a uma semana de receitas do banco – para fechar o processo de lavagem.

Nem um só dirigente ou empregado foi sujeito a procedimento criminal, embora a colaboração com organizações terroristas ou a participação em atividades ligadas ao narcotráfico sejam passíveis de cinco anos de prisão. Ser dirigente de um grande banco dá direito a carta branca para facilitar, com total impunidade, o tráfico de drogas duras ou outros crimes.

O International Herald Tribune (IHT) fez uma reportagem sobre os debates realizados no Departamento de Justiça. Segundo as informações obtidas pelo jornal, vários procuradores pretendiam que o HSBC se declarasse culpado e reconhecesse ter violado a lei que o obriga a informar as autoridades sobre a ocorrência de transações superiores a 10.000 dólares identificados como tendo origem duvidosa. Daí resultaria a cassação da licença bancária e o término das atividades do HSBC nos EUA. Após vários meses de discussão, a maioria dos procuradores tomou outro rumo e decidiu que melhor seria não processar o banco por atividades criminosas, pois era necessário evitar o seu encerramento. Convinha mesmo evitar manchar demasiado a sua imagem.

A modesta multa de 1,9 bilhão de dólares é acompanhada duma espécie de liberdade condicionada: se, entre 2013 e 2018, concluírem que o HSBC não pôs fim definitivo às práticas que originaram a sanção (não é uma condenação), o Departamento de Justiça poderá reabrir o processo. Em resumo, a medida pode resumir-se assim: «Anda, meu patife, passa para cá uma semana do teu ordenado, e não voltes a repetir a brincadeira nos próximos cinco anos». Aí está um belo exemplo de «demasiado grande para ser condenado».

Em julho de 2013, numa das reuniões da comissão senatorial que investigou o caso HSBC, Elizabeth Warren, senadora democrata do Estado de Massachusetts, apontou o dedo a David Cohen, representante do Ministério das Finanças e subsecretário responsável pela luta contra o terrorismo e a espionagem financeira.

A senadora disse, grosso modo, o seguinte: «O governo dos EUA leva muito a sério a lavagem de dinheiro (…) É possível encerrar um banco que se dedica a lavagem de dinheiro, as pessoas envolvidas podem ser interditadas de praticar uma profissão ou atividade financeira e toda a gente pode ser mandada para a prisão. Ora, em dezembro de 2012, o HSBC (…) confessou ter lavado 881 bilhões de dólares dos cartéis mexicanos e colombianos da droga; o banco admitiu igualmente ter violado as sanções. O HSBC não o fez apenas uma vez, é um procedimento recorrente. O HSBC pagou uma multa mas nenhuma pessoa foi banida do comércio bancário e não se ouviu falar de um possível encerramento das atividades do HSBC nos EUA. Gostaria que respondesse à seguinte questão: quantos bilhões de dólares um banco tem de lavar, antes de se considerar a possibilidade de encerrar a prática?»

O representante do Tesouro acusou o golpe, respondendo que o processo era demasiado complexo para permitir uma conclusão. A senadora declarou a seguir que quando um pequeno vendedor de cocaína é apanhado, fica uns quantos anos na prisão, enquanto um banqueiro que lava bilhões de dólares de droga pode regressar tranquilamente a casa, sem receio da Justiça.

A biografia de Stephen Green [presidente do HSBC no período 2003-2010] ilustra bem a relação simbiótica entre a finança e a governança. A coisa vai ainda mais longe, pois ele não se contentou em servir os interesses do grande capital, enquanto banqueiro e ministro; é também prior da igreja oficial anglicana e escreveu dois livros sobre ética e negócios, um dos quais intitulado «Servir a Deus? Servir a Mamom?». O título do livro remete para o Novo Testamento. «Ninguém pode servir dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao Mamom». Mamom representa a riqueza, a avareza, o lucro, o tesouro. Encontramos esta palavra em aramaico, hebraico e fenício. Por vezes Mamom é usado como sinônimo de Satã. Quanto a Stephan Green, é elogiado pelas mais altas autoridades universitárias e é manifestamente intocável.

Passemos em revista alguns elementos da sua biografia. Começa a sua carreira no ministério britânico do Desenvolvimento Ultramarino, depois passa para o setor privado e trabalha para o consultor internacional McKinsey. Em 1982 é contratado pelo HSBC (Hong Kong Shanghai Banking Corporation), o mais importante banco britânico, onde ascende rapidamente a funções de alta responsabilidade. Finalmente, em 2003, torna-se diretor executivo do HSBC e em 2006 acede à presidência do grupo, onde permanece até 2010.

As acusações feitas pelas autoridades americanas em matéria de lavagem de 881 bilhões de dólares do dinheiro dos cartéis da droga e de outras organizações criminosas dizem respeito ao período 2003-2010. Segundo o relato das 334 páginas tornadas públicas por uma comissão do Senado norte-americano em 2012, Stephan Green, desde 2005, foi informado por um empregado do banco que o HSBC tinha mecanismos de lavagem no México e levava a cabo múltiplas operações suspeitas. Ainda em 2005, a agência financeira Bloomberg, com sede em Nova Iorque, acusa o HSBC de lavagem de dinheiro da droga.

Stephen Green responde que se trata de um ataque irresponsável e sem fundamento, que põe em causa a reputação de um grande banco internacional acima de todas as suspeitas. Em 2008, uma agência federal norte-americana comunica a Stephen Green que as autoridades mexicanas descobriram a existência de operações de lavagem realizadas pelo HSBC México e uma das suas filiais num paraíso fiscal do Caribe («Cayman Islands Branch»). A agência acrescenta que a situação pode implicar uma responsabilidade penal para o HSBC.

A partir desse momento, as autoridades norte-americanas de controle dirigem repetidos avisos à direção do banco, muitas vezes aflorando a gravidade dos fatos. O banco promete alterar os seus comportamentos, mas na realidade prossegue com as práticas criminosas. Finalmente os alertas dão lugar, em outubro de 2010, a um aviso para pôr termo às práticas ilegais. Em finais de 2012, após a apresentação pública do relatório da comissão senatorial e meses de debate entre diferentes agências de segurança dos EUA, é aplicada uma multa de 1,9 bilhão de dólares ao HSBC.

Stephen Green está em boa posição para saber o que fazia o banco no México, nos paraísos fiscais, no Oriente Médio e nos Estados Unidos, pois além de dirigir o conjunto do grupo HSBC, dirigiu no passado o HSBC Bermudas (estabelecido num paraíso fiscal), o HSBC México, o HSBC Oriente Médio. Presidiu igualmente o HSBC Private Banking Holdings (Suíça) SA e o HSBC América do Norte Inc.

Quando veio a público, em 2012, que o HSBC teria de pagar uma considerável multa nos EUA por branqueamento de dinheiro dos cartéis da droga, Stephen Green já tinha passado de grande patrão do HSBC a ministro do governo conservador-liberal conduzido por David Cameron.

Voltemos um pouco atrás para descobrir que o timing seguido por Stephen Green foi perfeito. Coisa de artista. Em fevereiro de 2010, publica o livro “O Justo Valor: Reflexões sobre a Moeda, a Moralidade e Um Mundo Incerto”. O livro é apresentado ao público nestes termos: «Será que alguém pode ser ao mesmo tempo uma pessoa ética e um homem de negócios eficaz? Stephen Green, simultaneamente sacerdote e presidente do HSBC, acha que sim.» Reparem que a «pessoa ética e o homem de negócios eficaz» são identificados com o «sacerdote e presidente do HSBC». A publicidade é patente. Na mesma época recebe o título de doutor honoris causa, concedido pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres.

Em outubro de 2010, pela segunda vez desde 2003, a justiça dos EUA avisa o HSBC para que ponha termo às suas atividades criminosas. O público ainda não está ao corrente. É tempo de Stephen Green abandonar o navio. Em 16 de novembro de 2010, a pedido de David Cameron, é nobilitado pela rainha de Inglaterra e passa a ser o «barão» Stephen Green de Hurstpierpoint do condado do Sussex ocidental. Nada disto pode acontecer por acaso. Para um homem de negócios que permitiu o branqueamento de dinheiros dos «barões» da droga, trata-se de uma bela promoção. À conta disso torna-se membro da Câmara dos Lordes em 22 de novembro de 2011. Se lessem isto num blog, diriam certamente que o autor estava a exagerar.

Em dezembro de 2010 demite-se da presidência do HSBC e em fevereiro de 2011 é elevado a ministro do Comércio e Investimento. Depois de empossado no cargo, coloca os seus bons serviços à disposição do patronato britânico, com o qual mantém relações muito frutuosas e estreitas, uma vez que desde maio de 2010 ocupa o posto de vice-presidente da Confederação da Indústria Britânica.

Desempenha um papel igualmente importante na promoção de Londres, que se prepara para receber os Jogos Olímpicos em Julho de 2012. É durante esse mês que uma comissão norte-americana envia o seu relatório sobre a questão do HSBC. Stephen Green recusa-se a responder às perguntas dos membros da Câmara dos Lordes em relação à sua implicação no escândalo. É protegido pelo presidente do grupo dos lordes conservadores, que diz que um ministro não tem de vir diante do Parlamento dar explicações sobre negócios estranhos ao seu ministério.

David Cameron afirmou em 2013 que lorde Green fez um «soberbo trabalho» ao intensificar os esforços do Governo britânico para reforçar as exportações britânicas, para fazer avançar os tratados comerciais e especialmente o tratado transatlântico entre a União Europeia e os EUA. Lorde Green esforçou-se muito para aumentar as vendas de armas britânicas nos mercados mundiais. Terminou o seu mandato de ministro em Dezembro de 2013 e dedicou o seu precioso tempo a dar conferências (certamente muito bem remuneradas) e a receber os favores propiciados por numerosas autoridades acadêmicas.

A sua carreira certamente não ficará por aqui. A sua hipocrisia não tem limites. Em março de 2009, quando o HSBC estava metido até o pescoço na lavagem de dinheiro de organizações criminosas, Green teve o descaramento de declarar, numa coletiva de imprensa a propósito das responsabilidades na crise iniciada em 2007-2008: «Estes acontecimentos evocam a questão da ética do setor financeiro. Dá a impressão que, muito frequentemente, os responsáveis não se perguntam se as suas decisões são corretas e apenas se ralam com a sua legalidade e conformidade aos regulamentos. É necessário que este setor retome o sentido da correção ética como motor das suas atividades.» É assim que Stephen Green, vampiresco tubarão, navegando acima das leis, se dirige aos sabujos que vão pressurosos repercutir as suas belas palavras na grande imprensa.

Green e todos quantos organizaram o branqueamento de dinheiro no seio do HSBC devem responder pelos seus atos perante a justiça e ser condenados severamente, sofrer privação de liberdade e ser obrigados a realizar trabalhos de utilidade pública. O HSBC deveria ser encerrado e a direção despedida. Em seguida o mastodonte HSBC deveria ser retalhado, sob controle cidadão, numa série de bancos públicos de média dimensão, cujas missões seriam estritamente definidas e exercidas no quadro de um estatuto de serviço público.

Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da Liberdade



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“O Capital no Século XXI” revoluciona ideias sobre desigualdade

Em livro sobre queda e ascensão da desigualdade extrema nos últimos cem anos, Thomas Piketty conclui com apelo: tributos sobre riqueza em escala mundial, e imposto de renda progressivo de até 80%. Por Paul Krugman, no New York Times

Thomas Piketty, professor na Escola de Economia de Paris, não é muito conhecido, ainda que isso possa mudar com a publicação em inglês de sua abrangente e magnífica meditação sobre a desigualdade, "Capital in the Twenty-First Century". Mas sua influência é profunda.

Tornou-se comum afirmar que estamos vivendo uma segunda "Gilded Age" [Era Dourada, período de grande expansão econômica nos EUA entre 1870 e 1900] – ou, nas palavras de Piketty, uma segunda Belle Époque –, definida pela incrível ascensão do "1%". Essa afirmação só se tornou lugar-comum graças ao trabalho de Piketty. Ele e colegas (especialmente Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley) são responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas estatísticas que tornam possível rastrear a concentração de renda e de riqueza no passado distante – até o começo do século 20, no Reino Unido e nos EUA, e até o final do século 18, na França. O resultado foi uma revolução em nossa compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo.

Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade: "De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da economia, a mais sedutora, e em minha opinião mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição", declarou Robert Lucas, da Universidade de Chicago, o mais influente macroeconomista de sua geração, em 2004.

Mas mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos. O foco eram os formandos universitários cuja renda superava a de trabalhadores com nível mais baixo de educação, ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados, e não a rápida ascensão da renda dos executivos e banqueiros.

Portanto, foi uma revelação quando Piketty e colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso "1%", e de grupos ainda mais estreitos, eram o mais importante na ascensão da desigualdade. E essa descoberta surgiu acompanhada por uma segunda revelação: as menções a uma nova "Gilded Age", que podiam parecer hiperbólicas, na verdade nada tinham de exagerado.

Nos EUA, a proporção da renda nacional reservada ao 1% mais rico seguiu uma curva em U. Antes da Primeira Guerra Mundial, o 1% mais rico detinha 20% da renda nacional, tanto nos EUA quanto no Reino Unido. Por volta de 1950, essa proporção caíra a menos da metade. Mas de 1980 para cá a parcela reservada ao 1% disparou de novo – e nos Estados Unidos ela retornou ao ponto em que estava um século atrás.

Ainda assim, a elite econômica atual é muito diferente da elite do século 19, não? Na época, as grandes fortunas tendiam a ser hereditárias; a elite econômica atual não é formada por pessoas que conquistaram suas posições com base no mérito?

Bem, Piketty nos diz que isso não é tão verdade quanto podemos imaginar e que, de qualquer modo, esse estado de coisas pode se provar não mais duradouro do que a sociedade de classe média que floresceu por uma geração depois da Segunda Guerra Mundial.

A grande ideia de "Capital in the Twenty-First Century" é não só a de que retornamos ao século 19 em termos de desigualdade de renda como a de que estamos no caminho de volta ao "capitalismo patrimonial", no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares.

É uma afirmação notável – e é precisamente por ser tão notável que ela precisa ser examinada de maneira crítica e cuidadosa. Antes que eu trate desse assunto, porém, permita-me afirmar já de saída que Piketty escreveu um livro verdadeiramente soberbo. O trabalho combina abrangência histórica – quando foi a última vez que você ouviu um economista invocar Jane Austen e Balzac? – e análise minuciosa de dados.

E, ainda que Piketty zombe dos economistas, como profissão, por sua "paixão infantil pela matemática", a base de sua argumentação é um tour de force de modelagem econômica, uma abordagem que integra a análise do crescimento econômico à da distribuição de renda e riqueza. Esse é um livro que mudará a maneira pela qual pensamos a sociedade e pela qual concebemos a economia.

O que sabemos sobre a desigualdade econômica, e sobre os momentos específicos nos quais adquirimos conhecimento sobre ela? Até que a revolução de Piketty varresse o campo, a maior parte do que sabíamos sobre desigualdade de renda e riqueza vinha de pesquisas nas quais domicílios escolhidos aleatoriamente preenchem um questionário, e suas respostas são computadas para produzir um retrato estatístico do todo. O padrão internacional para essas pesquisas é o levantamento anual conduzido pelo Serviço de Recenseamento dos EUA. O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) também conduz uma pesquisa trienal sobre a distribuição de riqueza.

As duas pesquisas são um guia essencial quanto à mudança da forma da sociedade dos Estados Unidos. Entre outras coisas, apontam para uma virada dramática no crescimento econômico americano, iniciada por volta de 1980. Antes disso, famílias de todos os níveis viam suas rendas crescerem mais ou menos em linha com o ritmo de crescimento da economia como um todo. Depois de 1980, porém, a parte do leão dos ganhos passou a caber ao topo da escala de renda, e as famílias na metade inferior ficaram muito para trás.

Historicamente, outros países não mostravam igual eficiência em rastrear quem fica com o quê; mas a situação mudou ao longo do tempo, em larga medida devido ao Estudo de Renda de Luxemburgo (do qual em breve farei parte). E a crescente disponibilidade de dados de pesquisa que podem ser comparados entre diferentes países resultou em novas percepções importantes.

Sabemos agora, especialmente, tanto que os Estados Unidos têm uma distribuição de renda muito mais desigual que a das economias avançadas da Europa quanto que boa parte dessa diferença pode ser atribuída diretamente a ações do governo.

As nações europeias em geral têm rendas altamente desiguais como resultado das atividades de mercado, como os Estados Unidos, ainda que talvez não na mesma extensão. Mas conduzem redistribuição muito maior por meio de taxas e transferências do que os Estados Unidos, o que resulta em desigualdade muito menor em termos de renda disponível.

No entanto, apesar de toda a sua utilidade, os dados dessas pesquisas têm limitações importantes. Tendem a subestimar, ou desconsiderar de todo, a renda que cabe ao punhado de indivíduos que ocupam o verdadeiro topo da escala de renda. Também apresentam profundidade histórica limitada. Os dados de pesquisa norte-americanos, por exemplo, remontam a apenas 1947.

É aí que entram Piketty e seus colegas, que se voltaram a uma fonte de dados inteiramente diferente: os registros tributários. Essa ideia não é novidade. De fato, as análises iniciais de distribuição de renda dependiam de dados tributários, porque não havia muitos outros dados com que pudessem contar. Piketty e seus colaboradores, porém, encontraram maneiras de combinar dados tributários e outras fontes a fim de produzir informações que complementam de maneira crucial os dados das pesquisas. E as estimativas baseadas nos impostos podem recuar muito mais ao passado.

Os Estados Unidos têm um imposto sobre a renda em vigor desde 1913; no Reino Unido, ele surgiu em 1909; a França, graças aos registros elaborados de coleta de impostos sobre propriedades e aos seus históricos detalhados, tem dados sobre patrimônio que remontam ao final do século 18. Explorar esses dados não é fácil. Mas usando todos os truques da profissão, e alguns palpites bem informados, Piketty consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos cem anos. Como eu disse, descrever nossa era como uma nova "Gilded Age" ou Belle Époque não é simples hipérbole; é a verdade pura e simples. Mas como foi que isso aconteceu?

Piketty lança um desafio intelectual imediato com o título do seu livro: "Capital no Século 21". Economistas ainda podem falar assim? Não é apenas a alusão evidente a Marx que torna o título tão surpreendente. Ao invocar o capital desde o começo, Piketty abandona as discussões mais modernas sobre a desigualdade e retoma tradição mais antiga. A suposição geral da maior parte dos pesquisadores sobre a desigualdade era que a renda auferida, em geral na forma de salário, é o mais importante, e que a renda gerada pelo capital não é nem importante nem interessante.

Piketty demonstra, porém, que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda. Ele também demonstra que, no passado --durante a Belle Époque europeia e, em menor escala, a "Gilded Age" norte-americana-- a propriedade desigual de ativos, e não o salário desigual, foi o principal propulsor da disparidade de renda. E argumenta que estamos no caminho de volta àquele tipo de sociedade.

Não se trata de especulação casual de sua parte. "Capital in the Twenty-First Century", afinal, é um trabalho que respeita os princípios do empirismo, e é propelido por um arcabouço teórico que busca unificar a discussão do crescimento econômico e da distribuição tanto de renda quanto de riqueza. Piketty basicamente vê a história econômica como a de uma corrida entre a acumulação de capital e outros fatores que propelem o crescimento, como o crescimento populacional e o progresso tecnológico.

É certo que essa é uma corrida que não pode ter vencedor permanente. Em prazo muito longo, o estoque de capital e a renda total precisam crescer mais ou menos no mesmo ritmo. Mas um lado ou outro pode permanecer décadas em vantagem.

Na véspera da Primeira Guerra Mundial, a Europa havia acumulado capital seis ou sete vezes maior que a renda nacional de cada país. Ao longo das quatro décadas seguintes, porém, uma combinação de destruição física e de desvio de poupança para esforços de guerra reduziu essa proporção à metade.

A acumulação de capital foi retomada depois da Segunda Guerra Mundial, mas o período registrou crescimento econômico espetacular -- os "Trente Glorieuses", ou "30 anos gloriosos". Por isso, a razão entre capital e renda permaneceu baixa.

Desde os anos 70, porém, a desaceleração do crescimento implicou em alta na razão entre capital e renda, de modo que o capital e a riqueza vêm caminhando de volta aos níveis que detinham na Belle Époque.

Essa acumulação de capital, diz Piketty, terminará por recriar desigualdade ao estilo da Belle Époque, a menos que seja combatida por tributação progressiva.
Por quê? É tudo uma questão de taxa de retorno sobre o capital (r) versus o ritmo de crescimento econômico (g).

Quase todos os modelos econômicos nos dizem que, caso g caia --o que vem acontecendo desde os anos 70 e deve continuar--, r cairá. Mas Piketty assevera que r cairá menos que g. Se for suficientemente fácil substituir trabalhadores por máquinas --se, para usarmos o jargão técnico, a elasticidade de substituição entre capital e trabalho for superior a um--, o crescimento lento, e a alta consequente na razão entre capital e renda, ampliarão a disparidade entre r e g.

E Piketty argumenta que é isso que os registros históricos provam que acontecerá. Uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos trabalhadores para os detentores de capital.

A sabedoria dominante foi sempre a de que não precisávamos nos preocupar, que as parcelas respectivas do capital e do trabalho na renda total se provam fortemente estáveis ao longo do tempo. Em prazo muito longo, porém, isso pode não ser verdade.

No Reino Unido, por exemplo, a parcela do capital na renda --quer em forma de lucros empresariais, dividendos, renda fixa ou vendas de propriedades, por exemplo-- caiu de cerca de cerca de 40% antes da Primeira Guerra para pouco mais de 20% em 1971, e de lá para cá recuperou cerca de metade do terreno. Nos EUA, esse arco histórico é menos claro, mas a redistribuição em favor do capital está em curso.

É especialmente importante apontar que os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise financeira, enquanto os salários --incluindo os das pessoas com nível mais elevado de educação-- se estagnavam. Uma parcela maior para o capital, por sua vez, eleva diretamente a desigualdade, porque a propriedade do capital é sempre distribuída de modo mais desigual do que a renda do trabalho.

Mas os efeitos ultrapassam isso, porque, quando o ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento, "o passado tende a devorar o futuro": a sociedade tende a ser dominada pela riqueza hereditária.

Considere a Europa da Belle Époque. Os proprietários de capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de 1% ao ano. Assim, os ricos podiam reinvestir parte suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e sua renda, crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio, e ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo.

E o que acontecia quanto esses indivíduos ricos morriam? Sua riqueza era legada aos herdeiros, com tributação mínima. Dinheiro herdado respondia por entre 20% e 25% da renda anual; a maior proporção das riquezas (cerca de 90%) era herdada e não auferida com o trabalho. E se concentrava nas mãos de minorias muito pequenas.

Em 1910, o 1% mais rico da população controlava 60% da riqueza da França; na Grã-Bretanha, eram 70%. Não admira, assim, que os romancistas do século 19 fossem obcecados por heranças. Piketty discute extensamente os conselhos do canalha Vautrin a Rastignac em "Pai Goriot", de Balzac, resumidos na afirmação de que nem a mais bem-sucedida carreira poderia resultar em mais que uma fração da fortuna que Rastignac seria capaz de adquirir ao se casar com a filha de um homem rico. Vautrin estava certo: ser parte do 1% mais rico dos herdeiros do século 19 conferia um padrão de vida 2,5 vezes superior ao que se poderia atingir por meio de esforço que a levasse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.

Seria tentador dizer que a sociedade moderna em nada se parece com isso. Mas tanto a renda do capital quanto a riqueza hereditária, ainda que menos importantes do que na Belle Époque, continuam a ser poderosos propulsores da desigualdade --e sua importância está crescendo.

Na França, mostra Piketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu muito nas guerras e no pós-guerra; por volta de 1970, era de menos de 50%. Mas retornou aos 70% e continua a crescer. Da mesma forma, houve primeiro queda e depois nova alta na importância das heranças no que tange a fazer de alguém parte da elite. O padrão de vida do 1% de herdeiros mais ricos caiu abaixo do 1% de trabalhadores mais bem pagos, entre 1910 e 1950, mas voltou a crescer depois de 1970. Ainda não estamos plenamente de volta ao padrão de Rastignac, mas uma vez mais se tornou mais valioso ter os pais certos (ou escolher os sogros certos) do que o emprego certo.

E pode ser apenas o começo. As estimativas de Piketty sobre o r e g mundiais em longo prazo sugerem que a era da equalização ficou para trás e que as condições são propícias ao restabelecimento do capitalismo patrimonial.

Dado esse quadro, por que a riqueza hereditária desempenha papel tão pequeno no discurso político moderno? Piketty sugere que as dimensões das fortunas hereditárias, por serem tão vastas, as tornam invisíveis: "A riqueza é tão concentrada que um grande segmento da sociedade literalmente não tem consciência de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que pertença a entidades surreais". É um argumento muito bom. Mas certamente não constitui a explicação completa. Pois o fato é que o exemplo mais conspícuo de uma disparada na desigualdade no mundo moderno --a ascensão do 1% de muito ricos no mundo anglo-saxão, especialmente nos EUA, não tem muito a ver com acúmulo de capital, pelo menos por enquanto. Tem mais a ver com remuneração e renda salarial excepcionalmente altas.

"O Capital no Século 21", como espero ter deixado claro, é um trabalho excelente. Em um momento no qual a concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos ressurgiu como questão política central, Piketty não oferece apenas documentação inestimável sobre o que está acontecendo, e com profundidade histórica incomparável. Também oferece o que podemos descrever como uma teoria do campo unificado para a desigualdade, integrando crescimento econômico, a distribuição de renda entre o capital e o trabalho e a distribuição de renda e riqueza entre os indivíduos em um só arcabouço. E, no entanto, há uma coisa que subtrai algum mérito a essa realização --uma espécie de prestidigitação intelectual, se bem que ela não envolva nenhuma trapaça ou falsidade da parte de Piketty.

Mesmo assim, eis: O principal motivo para que houvesse necessidade de um livro como esse é a ascensão não só do 1% mas do 1% dos EUA, especificamente. Mas essa ascensão, como se verifica, aconteceu por razões que não integram o escopo da grande tese de Piketty.

Ele é um economista bom e honesto demais para tentar enrolar com relação a fatos inconvenientes. "A desigualdade nos EUA em 2010", afirma, "é quantitativamente tão extrema quanto na velha Europa da primeira década do século 20, mas a estrutura dessa desigualdade é --muito claramente-- distinta". De fato, o que vimos nos EUA e estamos começando a ver em outros lugares é algo de "radicalmente novo": a ascensão dos "supersalários".

O capital ainda importa. Nos escalões mais elevados da sociedade, a renda do capital ainda excede a renda dos salários e bonificações. Piketty estima que a desigualdade aumentada da renda do capital responda por cerca de um terço do aumento da desigualdade nos EUA.

Mas a renda salarial no topo também disparou. Os salários reais dos EUA cresceram pouco, se alguma coisa, do começo dos anos 70 para cá, mas os salários do 1% mais bem pago subiram em 165%, e os do 0,1% mais bem pago, 362%. Se Rastignac estivesse vivo hoje, Vautrin talvez reconhecesse que ele poderia se sair tão bem arrumando emprego à frente de um fundo de hedge quanto com um casamento rico.

O que explica essa ascensão dramática na desigualdade de renda, com a parte do leão dos ganhos reservada às pessoas no topo da escala? Alguns economistas dos EUA sugerem que a tendência seja propelida por mudanças na tecnologia. Piketty não aceita essa teoria. Ele aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de astros, de cinema ou do esporte, para sugerir que as altas rendas são merecidas. Mas essa é uma fração muito pequena da elite. O que há é principalmente executivos --cujo desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de valor monetário.

O que determina o valor de um presidente-executivo em uma grande companhia? Bem, existe um comitê de remuneração, indicado pelo próprio presidente-executivo. Na prática, argumenta Piketty, os executivos de alto nível ditam sua remuneração, restringidos apenas pelas normas sociais e não por qualquer forma de disciplina de mercado. E ele atribui a disparada nos salários a uma erosão das normas sociais. De fato, ele atribui a disparada na renda salarial entre os mais bem pagos a forças sociais e políticas, e não estritamente econômicas.

É justo apontar que ele oferece uma possível análise econômica sobre essa mudança de normas, argumentando que a queda das alíquotas tributárias para os ricos na verdade fez com que a elite ganhasse em ousadia. Quando um importante executivo retinha apenas uma pequena fração da renda que poderia receber violando as normas sociais e estabelecendo para si mesmo um salário muito alto, ele talvez decidisse que o opróbrio que sofreria nesse caso não valeria a pena. Mas o corte drástico de sua alíquota tributária pode levar uma pessoa como essa a se comportar diferentemente. E quanto mais os titulares de supersalários violarem as normas, mais essas normas mesmas mudarão.

Há muito a elogiar nesse diagnóstico, mas lhe falta claramente o rigor e a universidade da análise de Piketty sobre a distribuição e retornos da riqueza. Além disso, não acho que "Capital no Seculo 21" rebata adequadamente a crítica mais reveladora quanto à hipótese sobre o poder dos executivos: a concentração de rendas muito altas nas finanças, onde é possível avaliar desempenhos. Não mencionei administradores de fundo de hedges irrefletidamente. Pessoas como eles são pagas com base em sua capacidade de atrair clientes e obter retornos sobre seus investimentos.

Pode-se questionar o valor social das finanças modernas, mas os Gordon Gekkos [personagem ficcional de Wall Street – Poder e Cobiça, filme de Oliver Stone de 1987] do mercado são claramente bons em alguma coisa, e sua ascensão não pode ser atribuída apenas a relações de poder, ainda que eu imagine que seja possível argumentar que a disposição de se envolver em transações financeiras dúbias, assim como a disposição de violar as normas sociais quanto aos salários, é incentivada pelos impostos baixos.

No geral, a explicação de Piketty sobre a alta na desigualdade salarial me parece convincente, ainda que o fato de que não inclua a desregulamentação no quadro analítico seja um desapontamento significativo. Mas, como afirmei, a análise dele quanto a isso carece do rigor de sua análise sobre o capital, para não mencionar sua imensa e inspiradora elegância intelectual.

No entanto, não devemos exagerar em nossa reação a isso. Mesmo que a disparada na desigualdade norte-americana até o momento tenha sido propelida principalmente por renda salarial, o capital ainda assim exerceu papel significativo. E, de qualquer jeito, a história no futuro deve se provar bastante diferente.

A atual geração de norte-americanos muito ricos pode consistir em larga medida de executivos e não de rentiers [rentistas], ou seja, pessoas que vivem de capitais acumulados. Mas esses executivos têm herdeiros. E dentro de duas décadas os EUA podem ser uma sociedade dominada pelos rentiers, com desigualdade ainda maior do que a da Europa na Belle Époque. O que não significa que isso precise inevitavelmente acontecer.

Há momentos em que Piketty parece oferecer uma visão determinista da história, sob a qual tudo deriva do ritmo de crescimento populacional e do progresso tecnológico. Mas seu livro deixa claro que a política pública pode fazer imensa diferença. Mesmo se as condições econômicas apontarem para desigualdade extrema, isso pode ser detido e até revertido, se o organismo político assim decidir. O ponto chave é que o que importa é o retorno obtido pela riqueza após os impostos. Assim, uma taxação progressiva --especialmente da riqueza e das heranças-- pode limitar a desigualdade. Infelizmente, a história que o próprio Piketty conta não leva ao otimismo.

Por boa parte do século 20, uma forte tributação progressiva ajudou a reduzir a concentração de renda e riqueza. Poder-se-ia imaginar que uma alta tributação para rendas mais elevadas seja o desfecho político natural para enfrentar desigualdades extremas. Mas Piketty rejeita essa conclusão: o triunfo da tributação progressiva durante o século 20 foi apenas "o efêmero produto do caos".

Como provas, ele oferece o exemplo da Terceira República francesa [1870-1940]. A ideologia oficial da república era altamente igualitária. Mas a riqueza e a renda eram quase tão concentradas, os privilégios econômicos quase tão dominados pelas heranças, quanto na monarquia constitucional britânica. E a política pública quase nada fazia para se opor ao domínio econômico dos rentiers: os impostos sobre as heranças eram ridiculamente baixos. Por que os cidadãos franceses não votavam em políticos que assumissem o compromisso de enfrentar a classe dos rentiers? Bem, então, como agora, a riqueza comprava muita influência, não apenas sobre a política, mas sobre o discurso público.

O mesmo fenômeno é visível hoje. Um aspecto curioso do cenário americano é que a política da desigualdade parece estar caminhando até à frente da realidade. Como vimos, a essa altura as elites econômicas dos EUA ainda devem seu status aos salários, e não à renda do capital. Mesmo assim, a retórica econômica conservadora já enfatiza e celebra o capital, de preferência ao trabalho --os "criadores de empregos", não os trabalhadores.

Piketty conclui com um apelo, especialmente, por impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial. É fácil ser cínico sobre as perspectivas de sucesso dessa empreitada. Mas certamente o magistral diagnóstico de Piketty sobre a situação para a qual nos encaminhamos torna o êxito mais provável. Por isso, seu livro é extremamente importante em todas as frentes. Piketty transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e desigualdade como fazíamos.

Paul Krugman é professor de economia e assuntos internacionais na Universidade de Princeton. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2008
Tradução de Paulo Migliacci para a Folha de S.Paulo

Nota do Editor: “Capital In The Twenty-First Century” (O Capital no Século XXI, em tradução livre), de quase 700 páginas, alcançou semana passada o primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos da Amazon.



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