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Justiça fiscal é uma decisão política

Na arrecadação dos recursos públicos se trava uma lutas entre as classes. Os mais agraciados são justamente os que mais empurram a conta para os outros. Por Marcelo Porto Rodrigues, no Le Monde Diplomatique

Justiça fiscal é uma discussão que nasce na esfera tributária, mas só é plenamente compreendida quando analisada sob as luzes da justiça social. Para um princípio de entendimento, a progressividade e regressividade dos tributos são aspectos importantes a ser considerados, porém cedo estes conceitos se revelam insuficientes. O imposto de renda das pessoas físicas segue alguns princípios da progressividade e, assim, quem tem mais renda pagaria mais e se submeteria a alíquotas progressivamente maiores. No entanto, já a fixação das deduções possíveis e o estabelecimento das faixas de alíquotas se mostram atos essencialmente políticos, os quais resultam da capacidade de algumas classes sociais empurrar a conta do Estado para outras classes de menor força.

A injustiça da regressividade é evidente quanto aos tributos que incidem sobre o consumo, como ICMS e IPI, pois podemos facilmente perceber, por exemplo, que se uma pessoa de baixa renda tiver gasto todo o seu salário com alimentação e despesas de casa até 10 dias antes do próximo recebimento, ela certamente terá arcado, quase sem saber, com tributos indiretos num valor que lhe permitiria chegar até o fim do mês. Diversamente, uma pessoa de alta renda, mesmo gastando em supérfluos pesadamente tributados, como perfumes e bebidas importados, ainda assim conseguirá poupar grande parte de sua renda, o que significa que quanto maior a renda disponível, menor será a participação dos tributos indiretos em seus gastos. O fato de os tributos indiretos serem de difícil visibilidade denuncia o componente político dessa forma de tributação.

Mesmo que se consiga um modelo tributário inspirado em justiça fiscal na ponta da arrecadação, com os mais afortunados sendo responsáveis por tributos progressivamente maiores, toda a justiça cairá por terra se o uso dos recursos públicos favorecer alguns em detrimento da maioria da sociedade. Basta notar a valorização auferida por donos de vastas áreas urbanas mantidas ociosas por décadas enquanto a cidade é obrigada a construir em sua volta os equipamentos urbanos necessários à coletividade. No mesmo caso estão os latifúndios improdutivos, por cuja permanência a sociedade arca com alto custo social. E também basta notar o montante dos juros pagos aos rentistas dos títulos do governo federal, contrapondo-os aos gastos sociais.

Com estas poucas observações, percebe-se que no campo da arrecadação e aplicação dos recursos públicos se trava uma das mais renhidas e persistentes lutas entre as classes. Aqueles mais agraciados na distribuição dos recursos públicos são justamente os mais articulados em empurrar a conta para os outros. Eis porque o impostômetro, painel que simula o montante arrecadado em “tempo real”, se revela reles demagogia, uma vez que reduz a discussão ao mero desejo individual de pagar menos imposto e suprime a reflexão sobre pontos essenciais para o entendimento da carga tributária e da justiça fiscal a ser buscada.

De outra forma, também a sonegação desequilibra qualquer modelo tributário baseado na justiça fiscal, ao mesmo tempo em que a corrupção tende a fazer estragos nas pontas da arrecadação e da distribuição dos recursos. Encontramos aqui plena justificativa para que se busque uma administração tributária forte e republicana, pois uma repartição fiscal com insuficiência de recursos humanos e materiais está, em crua constatação, colaborando ativamente para a iniquidade do sistema tributário e agravando a desigualdade. Em um cenário de fraqueza, encontramos a razão de as administrações tributárias se vergarem aos ventos de agentes econômicos pouco afeitos à solidariedade, bem como a explicação por que elas se debatem infindavelmente, sem nunca encontrar meios de resolver suas dificuldades de gestão, que seriam facilmente sanáveis se houvesse vontade política.

Está claro, nesta altura, que da questão da justiça fiscal surge a pergunta que interessa ao povo brasileiro: que nação queremos ser? A resposta já foi dada pelos cidadãos naquela que se chamou “Constituição Cidadã”.
O desafio de fazer com que a nossa Constituição da República se torne efetivamente uma carta republicana exige que se supere, de uma vez por todas, o garrote conservador de ser ela, tão-somente, uma carta de princípios. Exige que a Constituição respire, se mova, se expresse concretamente e produza os resultados ali pretendidos pelo povo. Exige remover os biombos dos bacharéis para desvelar a imensa tarefa fixada logo no preâmbulo, para que o Estado brasileiro assegure o exercício da igualdade numa sociedade fraterna, revelando que o artigo 3º cuida de estabelecer como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais. Cumpre fazer valer a igualdade assegurada no artigo 5º e cumprir a redução das desigualdades impostas na delimitação da ordem econômica e financeira, juntamente com a função social da propriedade.
Por sua vez, a tributação só faz sentido em termos republicanos quando subordinada aos princípios maiores da justiça e da igualdade, devidamente conciliados com as limitações ao poder de tributar.

É óbvio que enfrentar a desigualdade exige recursos e gastos, porém estes devem ser vistos como são na verdade: investimentos da nação nela própria, o que ao longo do tempo aumentará a renda do país, melhorará a educação e a capacidade dos trabalhadores, provocará aumento saudável da arrecadação, posto que resultado do crescimento da economia, e não da manipulação de alíquotas. Lembrando que nossos bisavós já alertavam “que o barato sai caro”, é duvidoso supor que ficaria mais em conta não enfrentar esta tarefa urgente, pois um país injusto cobra o seu preço sufocando o crescimento, tornando o desenvolvimento mais lento, com mais exploração, mais violência e mais atraso.

Pensar sobre justiça fiscal significa fazer uma incursão aos conceitos de cidadania, igualdade, nação, justiça social. Se o fazemos com espírito livre e fraterno, somos levados a reconhecer que o conceito de justiça fiscal encontra seu significado profundo quando há reflexão política, não podendo significar de forma alguma a obtusidade de “diminuir os meus impostos”, mas reconhecer o quanto estamos dispostos, como cidadãos, a contribuir para que o Brasil seja mais justo.

A justiça fiscal deve estar na mente do povo em estreita articulação com a busca da justiça social, pois sem esta jamais haverá justiça fiscal – são decisões políticas que o povo deve impor, sem mais demora, ao Estado brasileiro.

* Marcelo Porto Rodrigues é auditor fiscal da Receita Federal



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