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Bancos especulam com alimentos

Mais de um bilhão de pessoas, uma em cada sete, têm fome. Os responsáveis são investidores institucionais como bancos, os principais especuladores nos mercados de produtos agrícolas. Por Eric Toussaint

Através das suas atividades de trading, os bancos são os principais especuladores nos mercados distribuidores e a prazo das matérias-primas e dos produtos agrícolas, dispondo de meios financeiros nitidamente mais avultados que os restantes intervenientes. Uma simples visita ao site do Commodity Business Awards |1| permite descobrir uma lista de bancos e de corretores que ocupam lugares de relevo no mercado de commodities |2| (quer se trate do mercado onde se vendem e compram fisicamente matérias-primas, quer seja um mercado onde se negociam derivados com base em commodities).

Entre esses bancos é frequente encontrarmos o BNP Paribas, Morgan Stanley, Crédit Suisse, Deutsche Bank e Société Générale. Alguns bancos vão mais longe e dotam-se de instrumentos para influenciar diretamente os estoques de matérias-primas. É o caso do Credit Suisse, que está associado à Glencore Xstrata, a maior sociedade mundial de corretagem em matérias-primas |3|. Dos bancos europeus, o BNP Paribas é, juntamente com o Deutsche Bank, um dos mais influentes no mercado de commodities e ocupa um papel-chave no setor de derivados de matérias-primas |4|.

Vários bancos norte-americanos foram mais longe que os europeus na estratégia de controle de uma parte do mercado de commodities, entre os quais JP Morgan, Morgan Stanley e Goldman Sachs. Por exemplo, o JP Morgan importou para os EUA 31 milhões de barris de petróleo no decurso dos primeiros meses de 2013! Os bancos dos EUA são proprietários de refinarias de petróleo, centrais elétricas, redes de distribuição de energia, empresas distribuidoras de metais, de produtos agrícolas, empresas de exploração de xisto...

Como se chegou a este ponto? O FED autorizou em 2003 o banco universal Citigroup a comprar a sociedade corretora Phibro, justificando que era normal completar a atividade do banco no mercado de derivados de commodities através da detenção física de estoques de matérias-primas (petróleo, gás, minerais...).

Quanto ao Morgan Stanley e à Goldman Sachs, que até 2008 |5| tinham o estatuto de banco de investimento, puderam, a partir de 1999, graças à lei de reforma bancária, que completou a revogação do Glass Steagall Act, adquirir centrais elétricas, petroleiros e outras infra-estruturas. Assim, o Stanley Morgan passou a possuir batelões, petroleiros, oleodutos, terminais de petróleo e silos de gás!

Por seu lado, o JP Morgan comprou o departamento de commodities do RBS em 2010, por 1,7 mil milhões de dólares, o que lhe permitiu adquirir 74 postos de armazenagem de metais no Reino Unido e nos EUA, enquanto a Goldman Sachs detém 112. Estes dois bancos detêm em conjunto mais armazéns de metais que o Glencore (que possui 179). Possuir postos de armazenagem é fundamental, nomeadamente se uma sociedade ou um cartel de sociedades (por exemplo os bancos) quiser especular com os preços, retendo ao máximo em armazém para fazer subir os preços ou inundando o mercado para os fazer baixar.

Foi o que se passou concretamente, por exemplo, no mercado de alumínio a partir de 2008. Segundo uma investigação levada a cabo pelo New York Times, desde que a Goldman Sachs comprou em 2010 os armazéns de alumínio de Detroit, o tempo de entrega do alumínio em barras passou de seis semanas para dezesseis meses. Os preços subiram de forma visível (apesar de a oferta e os estoques de alumínio no mercado mundial terem aumentado), o que provocou fortes reações de empresas como a Coca-Cola e a cervejeira Miller, grandes consumidoras de alumínio para fabrico de latas... Só em lucros de armazenagem atacadista de alumínio em Detroit, a Goldman encaixou 220 milhões de dólares |6|.

Depois de obter suculentos benefícios manipulando os tribunais, os bancos com maior presença nos mercados físicos de commodities adotaram uma estratégia de saída. Três razões principais levaram-nos nessa direção. Primeiro, as autoridades de controle deram conta das manipulações praticadas por numerosos bancos. JP Morgan, Barclays, Deutsche Bank tiveram de pagar multas em diversos negócios, nomeadamente por causa da manipulação do mercado de eletricidade da Califórnia. O JP Morgan aceitou pagar uma multa de 410 milhões de dólares nesse processo, que ainda não está concluído. |7| As autoridades norte-americanas, pressionadas pelas sociedades concorrentes dos bancos e face à impopularidade dos banqueiros em geral, procuram limitar seriamente as atividades dos bancos nos mercados físicos de commodities.

Segundo, os lucros obtidos pelos bancos nesses mercados começaram a baixar a partir de 2011‑2012 e os preços das matérias-primas tendem a contrair-se. Terceiro, o capital (Core Tier 1) necessário aos investimentos nas empresas de corretagem é mais pesado que em outros investimentos (dívidas soberanas, por exemplo). Como os bancos têm de aumentar a proporção entre fundos próprios e ativos ponderados, acabam por chegar à conclusão de que mais vale desfazerem-se, no seu todo ou em parte, dos investimentos no mercado físico de commodities |8|.

Esta é uma situação ainda em evolução. Nada disto impede que os bancos continuem muito ativos nos mercados de derivados de commodities e nos segmentos de mercados financeiros ligados às matérias-primas. A sua capacidade nociva é e continuará a ser muito considerável se, entretanto, não forem tomadas medidas radicais.

Estes bancos são os responsáveis de primeira linha pelo desenvolvimento da bolha especulativa que se formou no mercado de commodities |9|. Quando ela rebentar, o efeito de boomerang na saúde dos bancos provocará novos estragos. Há ainda que ter em conta o real desastre, bastante mais grave, para as populações dos países do Sul exportadores de matérias-primas. De uma forma ou de outra, todos os povos do mundo serão afetados.

PAPEL DA ESPECULAÇÃO NA INFLAÇÃO DOS PREÇOS DOS ALIMENTOS E DO PETRÓLEO EM 2007-2008

A especulação nos principais mercados dos EUA onde se negociam os preços mundiais dos bens primários (produtos agrícolas e matérias-primas) contribuiu decisivamente para o crescimento brutal dos preços dos alimentos em 2007-2008 |10|. Esta subida dos preços provocou um aumento dramático, de mais de 140 milhões num ano, do número de pessoas que sofrem de subnutrição.

Mais de um bilhão de seres humanos (uma pessoa em cada 7) têm fome. Os responsáveis não são francos-atiradores, são investidores institucionais (os bancos |11|, os fundos de pensões, os fundos de investimento, as seguradoras), as grandes sociedades de trading como a Cargill. Os hedge funds também têm a sua quota de responsabilidade, embora o seu peso seja inferior ao dos investidores institucionais |12|.

Michael W. Masters, que dirigia há doze anos um hedge fund da Wall Street, explicitou o papel nefasto dessas instituições, ao apresentar o seu testemunho perante uma comissão do Congresso em Washington, em 20 de maio de 2008 |13|. Nessa comissão, encarregada de inquirir o possível papel da especulação na subida dos preços dos produtos de base, declarou ele: «Perguntam-me: os investidores institucionais contribuem para a inflação dos preços dos alimentos e da energia? A minha resposta inequívoca é esta: SIM» |14|.

Neste testemunho, que é exemplar, ele explica que o aumento dos preços dos alimentos e da energia não se deve a uma insuficiência da oferta, mas sim a um aumento brutal da procura proveniente de novos atores nos mercados a prazo dos bens primários (commodities) onde se compram «futuros». Nesse mercado (também chamado contrato a prazo), os intervenientes compram a produção futura: a próxima colheita de trigo, o petróleo que será produzido nos próximos seis ou cinco anos etc. No passado, os principais intervenientes nesses mercados eram empresas que tinham um interesse específico – ligado à sua atividade – num desses bens primários. Podia tratar-se por exemplo duma companhia aérea que compra o petróleo de que necessita ou de uma firma alimentar que negocia cereais.

Michael W. Masters mostra que, nos EUA, os capitais consignados pelos investidores institucionais ao segmento index trading dos bens primários dos mercados a prazo passaram de 13 bilhões de dólares em finais de 2003, para 260 bilhões em março de 2008 |15|. Os preços de 25 bens primários cotados nesses mercados subiram 183% durante o mesmo período. Explica ele que se trata de um mercado estreito e que basta que investidores institucionais como os fundos de pensões ou os bancos consignem 2% dos seus ativos para perturbar seu funcionamento.

Em 2004, o valor total dos contratos futuros respeitantes a 25 bens primários elevava-se a 180 bilhões de dólares. Comparando com o mercado mundial de ações, que representava 44 bilhões, era 240 vezes mais. Michael W. Masters indica que nesse ano os investidores institucionais investiram 25 bilhões de dólares no mercado de futuros, o que perfaz 14% do mercado. Revela que durante o primeiro trimestre de 2008 os investidores institucionais aumentaram de forma considerável os seus investimentos nesse mercado: 55 bilhões em 52 dias úteis. Não admira que os preços disparem!

O preço dos bens primários no mercado a prazo repercute imediatamente nos preços correntes desses bens. Assim, quando os investidores institucionais compraram quantidades enormes de milho e trigo em 2007-2008, os preços desses produtos dispararam.

Note-se que em 2008 o órgão de controle dos mercados a prazo, a Commodity Futures Trading Commission (CFTC), estimou que os investidores institucionais não podiam ser considerados como especuladores. A CFTC definiu-os como participantes comerciais nos mercados («commercial market participants»). Isto permite-lhe afirmar que a especulação não desempenha um papel de relevo nos preços.

Michael W. Masters faz uma crítica severa à CFTC; mais severa ainda é a crítica de Michael Greenberger, professor de Direito na Universidade de Maryland, que prestou declarações perante uma comissão do Senado a 3-06-2008. Michael Greenberger, que foi diretor de um departamento da CFTC de 1997 a 1999, critica a permissividade dos dirigentes que metem a cabeça na areia face à manipulação dos preços da energia pelos investidores institucionais. Ele cita uma série de declarações desses dirigentes, dignas de figurarem numa antologia da hipocrisia e da estupidez humana. Segundo Michael Greenberger, 80 a 90% das transações nas bolsas dos EUA no setor da energia são especulativas |16|. A autoridade das suas afirmações permanece incontestada.
Em 22 de setembro de 2008, em plena tormenta financeira nos EUA, enquanto o presidente Bush anunciava um plano de resgate dos bancos que consistia em entregar-lhes 700 bilhões de dólares (sem contar com a liquidez que lhes foi posta à disposição massivamente), o preço da soja dava um salto especulativo de 61,5%!

Jacques Berthelot também demonstra o papel crucial desempenhado pela especulação dos bancos na subida dos preços agrícolas mundiais |17|. Dá como exemplo o banco belga KBC, que levou a cabo uma campanha publicitária para vender um novo produto comercial: um investimento, dirigido às poupanças, em seis matérias-primas agrícolas. Os fundos de investimento «KBC-Life MI Security Food Prices 3» acenam aos clientes com um slogan cínico: «Tirem partido da subida de preço da alimentação!» Esta publicidade apresenta como uma «oportunidade» a «penúria de água e de terras agrícolas cultiváveis», donde resulta «uma penúria de produtos alimentares e uma alta dos preços da alimentação» |18|.

Do lado da justiça americana, os especuladores estão a salvo. Paul Jorion, num artigo de opinião publicado no Le Monde, põe em causa a decisão de um tribunal de Washington que invalidou a 29 de setembro de 2012 medidas tomadas pela CFTC «que visavam criar um teto para o volume das posições detidas por um interveniente no mercado a prazo das matérias-primas, a fim de que não possa, só por si, desequilibrá-lo» |19|.

Jean Ziegler, ex-relator das Nações Unidas para o direito à alimentação, exprime a situação sem rodeios: «A crise financeira de 2007-2008 provocada pelo banditismo bancário teve duas consequências, entre outras. Primeira: os fundos especulativos (hedge funds) e os grandes bancos migraram depois de 2008, abandonando certos segmentos dos mercados financeiros e virando-se para os mercados das matérias-primas, nomeadamente o das matérias-primas agrícolas. Se olharmos para os três alimentos de base (milho, arroz e trigo), que preenchem 75% do consumo mundial, vemos que os preços explodiram. Em dezoito meses, o preço do milho aumentou 93%, a tonelada de arroz passou de 105 para 1010 dólares e a tonelada de trigo moído duplicou a partir de setembro de 2010, passando para 271 euros.

Esta explosão dos preços gera lucros astronômicos para os especuladores, mas mata nos bairros de lata centenas de milhares de mulheres, homens e crianças. Segunda consequência: a corrida dos hedge funds e de outros especuladores às terras aráveis do hemisfério Sul. Segundo o Banco Mundial, em 2011, 41 milhões de hectares aráveis foram açambarcados pelos fundos de investimento e pelas multinacionais só na Ãfrica. Em consequência foram expulsos os pequenos agricultores. |20|

Em fevereiro de 2013, num relatório intitulado «Os Bancos Franceses Que Especulam com a Fome», a ONG Oxfam France indica que os quatro principais bancos franceses – BNP Paribas, Société Générale, Crédit Agricole e Natixis (BPCE) – geriam para os seus clientes, em novembro de 2012, pelo menos dezoito fundos de especulação sobre as matérias-primas.

«Há pelo menos duas formas de especular», explica Clara Jamart, responsável pela segurança alimentar na Oxfam France. «Tomando posições nos mercados de produtos derivados de matérias-primas agrícolas. Ou através de fundos de índice, que seguem os preços das matérias-primas agrícolas e os puxam para cima.» |21| A maioria desses fundos foi criada aquando do início da crise alimentar de 2008, com o objetivo manifesto de extrair ganhos da especulação sobre alimentos e outras commodities.

Em Bruxelas, o Réseau Financement Alternatif também denunciou em 2013 seis bancos ativos na Bélgica no âmbito da especulação sobre a fome no mundo. Cerca de 950 milhões de euros provenientes de clientes de bancos belgas servem para especular com as matérias-primas alimentares |22|.

É preciso pôr fim a esta ordem de coisas. Eis 22 propostas que visam construir uma alternativa à crise alimentar |23|.

> Proibir a especulação sobre a alimentação; especular com a vida das pessoas é um crime, por isso os governos e as instituições internacionais devem proibir os investimentos especulativos sobre os produtos alimentares.
Proibir os derivados sobre commodities.
> Proibir os bancos e outras sociedades financeiras privadas de intervir no mercado das commodities.
> Socializar a banca sob controle cidadão, nomeadamente atribuindo-lhe como missão o financiamento de projetos agrícolas que favoreçam a soberania alimentar e deem prioridade às pequenas explorações familiares, às cooperativas e ao setor agrícola público.
> Estabelecer ou restabelecer organizações internacionais reguladoras dos mercados e da produção dos principais produtos de exportação (carteis de países produtores por exemplo nos setores do café, cacau, bananas, chá etc.) para assegurar preços estáveis em nível internacional.
Acabar com os planos de ajustamento estrutural (PAS) que obrigam os Estados a renunciar à soberania alimentar.
> Proibir o açambarcamento de terras.
> Promover reformas agrárias globais (sobre a terra, claro está, mas também no que diz respeito à água e às sementes) para assegurar que os camponeses e camponesas que produzem alimentos para as populações tenham acesso aos recursos agrícolas, em vez das grandes empresas que praticam a exploração.
> Inscrever o direito à soberania alimentar no direito internacional, para que o direito de cada país a desenvolver as suas próprias políticas agrícolas e a proteger a sua agricultura, sem molestar os outros países, seja reconhecido (nomeadamente na Carta dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais).
> Acabar com os mecanismos de servidão da dívida pública externa ou interna dominados pelos bancos privados, assim como acabar com a servidão das famílias camponesas aos usurários privados.
> Promover uma moratória sobre os agrocombustíveis industriais, proibir os organismos geneticamente alterados.
> Reformar a Política Agrícola Comum da UE e o Farm Bill dos EUA, que produzem efeitos devastadores no equilíbrio dos mercados agrícolas.
> Não subscrever, e, se for o caso, denunciar os acordos de livre troca multilateral e bilateral (ALE e APE) que contradizem a soberania alimentar.
> Estabelecer ou restabelecer as proteções alfandegárias às importações agrícolas.
> Reconstituir as reservas alimentares públicas em cada país.
> Restabelecer mecanismos de garantia dos preços agrícolas.
> Desenvolver políticas de controle da produção para estabilizar os preços agrícolas.
> Controlar as margens de lucro dos intermediários.

A segurança alimentar de todos nós passa por preços agrícolas estáveis que cubram os custos de produção e assegurem a remuneração decente dos produtores. O modelo de preços agrícolas baixos, promovido pelos governos para aumentar o consumo em massa de produtos manufaturados e de serviços (turismo, entretenimento, telecomunicações etc.), não é sustentável, nem no plano social nem no plano ambiental. É um modelo que beneficia essencialmente as grandes empresas do agronegócio, os bancos privados e, desviando as atenções democráticas das populações para o consumo em massa, as elites políticas e econômicas dos países, que confiscam assim o poder.

Face às crises alimentares e ambientais atuais, é indispensável e urgente fazer mudanças radicais. As propostas acima apresentadas oferecem pistas para políticas agrícolas e comerciais baseadas na soberania alimentar e permitem a estabilização dos preços agrícolas em níveis capazes de assegurar uma produção alimentar sustentável na grande maioria dos países de todo o mundo.

No plano local, convém acrescentar:
> Apoiar a produção agrícola local, nomeadamente apoiando a atividade agrícola e facilitando os mecanismos de crédito aos pequenos produtores.
> Apoiar e desenvolver os circuitos de comercialização diretos/curtos entre produtores e consumidores, para que os preços assegurem a remuneração dos camponeses e sejam acessíveis aos consumidores.
> Encorajar o consumo de produtos locais.
> Apoiar os modos de produção mais autônomos, por oposição aos produtos da indústria química [sementes, adubos, fertilizantes, etc.], e portanto menos sujeitos às variações de custos de produção (pecuária alimentada a erva em vez de milho/soja, por exemplo).

Artigo publicado em CADTM.org; Tradução: Rui Viana Pereira; Revisão: Maria da Liberdade

Notas
|1| http://www.commoditybusinessawards.com/winners/winners-2013.html
|2| As commodities incluem o mercado de matérias-primas (produtos agrícolas, minerais, metais e metais preciosos, petróleo, gás, etc.). As commodities, tal como outros ativos, são negociadas de forma a permitir a determinação dos seus preços, tanto nos mercados à vista como nos mercados de derivados.
|3| A Glencore Xsrata é uma companhia de investimento e corretagem de matérias-primas fundada pelo trader Marc Rich. Tem sede na Suíça, em Baar, no cantão de Zoug, paraíso fiscal bem conhecido pelos burlistas de alto gabarito. Marc Rich (falecido em 2013) foi processado por diversas vezes, por corrupção e evasão fiscal. Foi anistiado pelo presidente Bill Clinton no último dia do seu mandato presidencial, o que provocou um escândalo considerável. A Glencore Xsrata detém no seu todo ou em parte 150 minas e sítios metalúrgicos. Segundo os dados disponíveis, antes da fusão com a Xsrata, que teve lugar em 2013, a Glencore controlava cerca de 60 % do zinco mundial, 50 % do cobre, 30 % do alumínio, 25 % do carvão, 10 % dos cereais e 3 % do petróleo. Esta sociedade muito controversa recebeu em 2008 o prêmio Public Eye Awards da multinacional mais irresponsável. A Glencore Xsrata está presente em 50 países e emprega 190 mil pessoas (ver http://www.glencorexstrata.com/about-us/at-a-glance/ e http://www.glencorexstrata.com/assets/Uploads/20130711-GlencoreXstrata-Factsheet.pdf). O patrão e principal proprietário da Glencore Xsrata (detém 16 % das ações), Ivan Galsenberg, teria recebido uma remuneração de cerca de 60 milhões de dólares 2013 (ver: http://lexpansion.lexpress.fr/economie/les-remunerations-des-patrons-de-glencore-xstrata-et-credit-suisse-epinglees_399326.html). O Crédit Suisse e a Glencore Xsrata colaboram estreitamente no mercado chinês. As outras grandes sociedades especializadas em corretagem (trading) de commodities (além dos bancos ativos nessa área) são Vitol (Holanda), Cargill (EUA), Trafigura (Holanda), Noble Group (Hong-Kong/Singapura), Wilmar (Singapura), Louis Dreyfus commodities (França), Mitsui (Japão), Mitsubishi (Japão), ADM (EUA). O rendimento acumulado da Glencore e destas 9 sociedades elevou-se ao montante colossal de 1,2 bilhões de dólares em 2012. Ver Financial Times, «Tougher times for the trading titans», 15-04-2013.
|4| Ver no sítio especializado: http://cib.bnpparibas.com/Products-services/Managing-your-risks-and-assets/Commodity-Derivatives/page.aspx/100
|5| Morgan Stanley e Goldman Sachs obtiveram a licença de banco comercial universal em plena crise, a fim de se beneficiarem de maior apoio do Estado e evitarem o mesmo destino do banco de investimento Lehman Brothers.
|6| L’Echo, «Des banques américaines accusées de manipuler les matières premières», 24-07-2013.
|7| Financial Times, «JPMorgan nears commodities sale», 6-02-2014. O Barclays, por seu lado, pagou uma multa de 470 milhões de dólares no mesmo processo.
|8| O JP Morgan anunciou no início de 2014 a intenção de vender as suas atividades físicas de commodities; o Deutsche Bank fez o mesmo. O Morgan Stanley chegou a acordo com a petrolífera russa Rosneft no sentido de lhe ceder uma parte do seu negócio.
|9| É claro que, no meio dos poderosos protagonistas do mercado de matérias-primas e de produtos alimentares, há que juntar as grandes empresas especializadas na extração, produção e comercialização de commodities: nos minerais, Rio Tinto, BHP Billiton, Companhia Vale do Rio Doce; no petróleo, ExxonMobil, BP, Shell, Chevron, Total; nos alimentos, além da Cargill já mencionada ao nível da corretagem, Nestlé, Monsanto e muitas outras, entre as quais várias empresas chinesas.
|10| Analisei as causas da crise alimentar de 2007-2008 em Eric Toussaint, «Une fois encore sur les causes de la crise alimentaire», 9-10-2008. Ver também: Damien Millet e Eric Toussaint, «Pourquoi une faim galopante au XXIe siècle et comment l’éradiquer?», 24-04-2009.
|11| Nomeadamente BNP Paribas, JP Morgan, Goldman Sachs, Morgan Stanley e, até ao momento do seu desaparecimento ou da sua compra, Bear Stearns, Lehman Brothers, Merrill Lynch.
|12| Ao nível mundial, no início de 2008, os investidores institucionais dispunham de 130 bilhões de dólares, os fundos soberanos de 3 bilhões de dólares e os hedge funds de 1 bilhão de dólares.
|13| «Testimony of Michael W. Masters, Managing Member/Portfolio Manager Masters Capital Management, LLC, before the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs United States Senate».
|14| «You have asked the question ‘Are Institutional Investors contributing to food and energy price inflation?’ And my answer is ‘YES’.»
|15| «Assets allocated to commodity index trading strategies have risen from $13 billion at the end of 2003 to $260 billion as of March 2008».
|16| Ver «Testimony of Michael Greenberger, Law School Professor, University of Maryland, before the US Senate Committee regarding “Energy Market Manipulation and Federal Enforcement Regimes”», 3-06-2008, p. 22.
|17| Jacques Berthelot, «Démêler le vrai du faux dans la flambée des prix agricoles mondiaux», 15-07-2008, p. 51-56
|18| http://www.lalibre.be/index.php?view=article&art_id=419336
|19| Paul Jorion, «Le suicide de la finance», Le Monde, 9-10-2012.
|20| Jean Ziegler, «La faim est faite de main d’homme et peut être éliminée par les hommes», entrevista dada a Eric Toussaint e publicada a 11-02-2012. Jean Ziegler é autor de Destruction massive, géopolitique de la faim, Éditions du Seuil, Paris, 2012.
|21| Ver Le Monde, «Quatre banques françaises accusées de "spéculer sur la faim"», 11-02-2013. Sobre a campanha internacional da Oxfam, ver Financial Times, «Food price speculation taken off the menu», 4-03-2013. Ver também no sítio da Oxfam: «EU deal on curbing food speculation comes none too soon», 15-01-2014
|22| Ver http://blogs.lecho.be/argentcontent/2013/06/des-centaines-de-millions-deuros-belges-pour-sp%C3%A9culer-sur-la-faim.html
|23| No que diz respeito às propostas, o autor está em dívida para com os debates em que participou como conferencista no decurso do seminário organizado nas Canárias de 21 a 24-Julho-2008 pela Comissão de Soberania Alimentar da organização La Via Campesina. Evidentemente o conteúdo do presente estudo e as propostas nele contidas não são da responsabilidade nem das pessoas nem das organizações citadas.

Eric Toussaint, docente na Universidade de Liège, preside ao CADTM (Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) Belgique. É autor de vários livros, e o próximo a sair, em Abril 2014: Bancocratie, prolonga a série «Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado», publicada em 2012-2013 no www.cadtm.org



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Espanha: nem todas as classes sociais perdem com a crise

Liberdade de muitos ameaçada pela riqueza de poucos: crise e políticas do governo para combatê-la levaram a aumento impressionante nas desigualdades sociais. Por Daniel Raventós, na Carta Maior

Reino da Espanha: 5.896.300 estão desempregados, segundo o Questionário sobre a População Ativa (EPA, em sua sigla inglesa) do último trimestre de 2013. Ou seja, a taxa de desemprego é de 26%. Uma taxa que mais que duplica entre os jovens abaixo de 25 anos: 55,6%. Quase três milhões de pessoas estão oficialmente desempregadas há mais de um ano, enquanto que em 1,8 milhão de lares todos os membros estão desempregados. Embora conhecidas, poucas cifras podem descrever uma realidade social de modo mais breve e contundente.

A crise e as políticas econômicas colocadas em ação pelo governo do Reino da Espanha para combatê-la (sic) trouxeram, entre outras muitas consequências, um incremento impressionante nas desigualdades sociais.

Mais concretamente, de 2008 a 2012, o coeficiente Gini de desigualdade passou de 0,319 para 0,35, o que representa um aumento de quase 12%. Esse índice, vale recordar, vai de zero (distribuição de renda perfeitamente igualitária) a 1 (um ganha tudo e os demais, nada). Quanto mais próximo do zero, menos desigualmente a renda é repartida; quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade.

Um aumento de 12% nesse índice, em apenas 4 anos, é enorme. Para termos uma rápida noção comparativa, nenhum outro Estado da União Europeia sofreu um aumento tão grande nesse indicador no mesmo período. Algumas comparações: a Grécia sofreu aumento de 3,3%; a França, de 2,3%. E, em outros Estados, o índice até diminuiu: em Portugal (!), houve diminuição de 3,5%; na Alemanha, de 5,9%. A média na zona do Euro foi um pequeno aumento de 0,8%.

Podemos pensar em divertimentos acadêmicos e fazer perguntas sobre se "é moral que os especuladores dos mercados financeiros possam obrigar Estados inteiros e seus cidadãos a fazer cortes drásticos" [1]. Fazer teses de doutorado e publicar em revistas de maior ou menor prestígio acadêmico.

Mas, levando as coisas a sério, as grandes desigualdades econômicas não precisam de perguntas morais aparentemente sofisticadas. Essas desigualdades são um impedimento à liberdade da grande maioria. E, com os dados oficiais, uma conclusão se impõe: a crise econômica e as medidas de política econômica que foram adotadas para supostamente fazer frente a ela aumentaram as desigualdades. A grande maioria viu sua liberdade ainda mais ameaçada do que no início da crise.

Outros poucos dados adicionais, para continuar constatando o aumento das desigualdades: de 2008 a 2011, último ano em que esse tipo de dado foi publicado pelo Banco da Espanha, as cifras sobre a renda média disponível nos lares do Reino são muito significativas. Em 2011, a renda média diminuiu 8,5% em relação a 2008. Mas, como está relacionada ao aumento do coeficiente Gini antes mencionado, essa diminuição média não foi igual para os distintos grupos de renda: todos perderam, exceto os 10% mais ricos. Esse grupo, inclusive, melhorou sua renda média durante o período de crise. Todos os demais grupos perderam, em maior ou menor proporção.

Outra realidade. A economia informal é muito grande. Segundo diferentes fontes, que não diferem significativamente nas porcentagens, a economia informal, no ano de 2011, representou em torno de 26% do PIB no Reino da Espanha. Apenas a Grécia, com mais de 30%, supera essa grande proporção.

A porcentagem de fraude fiscal dessa economia é da ordem de 22,5% do conjunto da arrecadação fiscal (ano de 2010), de mais de 70 bilhões. E quem pratica a maior fraude fiscal são os ricos. Um pequeno mas muito significativo exemplo: em um estudo [2] sobre o financiamento de uma renda básica para a Catalunha, realizado a partir de mais de 200 mil declarações de IRPF de 2010, concluiu-se que a afirmação anterior vigorava de maneira gritante.

Partiu-se de três perfis de renda, pertencentes a funcionários docentes, como é o caso dos professores primários, os da escola secundária e os catedráticos das universidades, com um tempo de 12 anos de trabalho nos três casos, e cujas remunerações são públicas. Nesse estudo, observamos que o primeiro perfil citado teve em 2010 uma remuneração bruta anual de 32.500 euros, o que o situa na oitava camada da população ordenada pelos rendimentos do IRPF da Catalunha – isto é, entre os 20% mais ricos da população tributados no IRPF. O segundo caso, dos professores secundaristas, com renda em 2010 de 37 mil euros anuais brutos, se situa já dentro dos 10% mais ricos. Finalmente, um catedrático de universidade, com uma renda anual bruta em 2010 de 54 mil euros, faria parte dos 5% mais ricos. É preciso chamar a atenção para quão distorcida é a realidade que esses dados representam? Trata-se de apenas um exemplo, embora muito revelador, da tremenda fraude fiscal que os ricos praticam.

A liberdade de muitos está ameaçada pela riqueza de alguns poucos [3]. A crise e as medidas de política econômica que se colocaram em prática no Reino da Espanha em maio de 2010 [4] fomentaram ainda mais a liberdade da maioria rica.

Daniel Raventós é professor da Faculdade de Economia e Empresa da Universidade de Barcelona, membro do Comitê de Redação SinPermiso e presidente da Rede Renda Básica. É membro do comitê científico da ATTAC. Seu último livro é: “O que é a Renda Básica? Perguntas (e respostas) mais frequentes” (El Viejo Topo, 2012).

Tradução de Daniella Cambaúva.
 
Notas: 
[1] Markus Christen (2014): “Entre o ser e o dever ser (neurofisiologia das emoções e da moral)”, Mente e cérebro, núm. 65, p. 70. 
 
[2] Jordi Arcarons, Daniel Raventós e Lluís Torrens (2013): “Um modelo de financiamento da renda básica tecnicamente factível e politicamente não inerte”, SinPermiso. 
 
[3]  Daniel Raventós (2014): “A liberdade de todos ameaçada pela grande riqueza de 2.170”, Público. 
 
[4] Antoni Domènech, Alejandro Nadal, Gustavo Búster e Daniel Raventós (2010): “A UE e Zapatero se superam, ou quando os loucos são os guias dos cegos”, SinPermiso.
 



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Em defesa da imaginação política utópica

Para evitar futuro sombrio de desigualdade, economista francês propõe taxar riqueza global, com alíquotas marginais de IR que excedam 80%. Por Kathleen Geier, na Carta Maior

A grande novidade no debate sobre a desigualdade na semana que passou foi a publicação do monumental livro de Thomas Piketty a respeito do tema, “O Capital no Século XXI”. Eu falei a respeito do livro na minha resenha para o The Washington Monthly; você também pode ler três resenhas no The American Prospect, assim como a crítica de Jean Baker no Huffignton Post. Paul Krugman discute alguns dos pontos técnicos do livro aqui.

Este livro está fazendo muito barulho, por excelentes razões. Comecemos com seu aparato técnico. Piketty, economista francês, reuniu uma base de dados formidável sobre riqueza e renda de várias nações que, em alguns casos, chega a antes do Século XIX. Isso lhe permitiu conduzir uma análise muito mais rigorosa e sistemática da história da desigualdade do que a geração anterior de pesquisadores.

O que também é estimulante no livro é a sua ambição e seriedade moral. Que se lhe reconheça o mérito: este cara escreveu nada menos um livro de 700 páginas, nas quais oferece uma grande teoria da dinâmica da desigualdade e da acumulação de capital, historicamente lastreada. Ao fazê-lo, ele recuperou um projeto que a maioria dos outros economistas abandonou há muito. Desde a “Curva de Kuznets”, de Simon Kuznets, nos anos 50 do século passado, não se tem um economista mainstream com uma investigação tão completa sobre a desigualdade.

Certamente, Piketty é mais responsável do que qualquer economista vivo pelo retorno da questão da distribuição de volta ao domínio que pertence: o centro da análise econômica. Esta é a pesquisa de Piketty e de seus colegas, como Emmanuel Saez, que primeiro demonstrou a profundidade e o alcance do problema da desigualdade econômica. Eles também identificaram o fato crucial de que a desigualdade em espiral é dirigida, sobretudo, por 1% dos mais ricos, na distribuição de renda. De acordo com os dados mais recentes de Piketty, nos EUA, os 10% mais ricos recebiam mais de um quinto de toda a riqueza. A desigualdade de renda neste país alcançou o maior nível dos últimos 100 anos.

É o caso lembrar que, durante a mesma década, enquanto a desigualdade continuava a aumentar, o livro econômico best-seller, de autoria de um jovem e aclamado economista premiado, orgulhosamente se dedicava a tópicos tão espetaculares e chamativos quanto trapaceiros, típicos de lutadores de sumô. Bem, este é o professor de economia estadunidense que se tem disponível por aqui.

Este “O Capital” trata de um tema cuja urgência é parte do que o torna tão bem vindo. E a lucidez incomum da escrita de Piketty torna-o tão acessível ao leitor externo – sem o jargão acadêmico horroroso, impenetrável – é especialmente admirável.

O mais impressionante de tudo, no entanto, é a poderosa análise de Piketty. O argumento do livro, em resumo, é este: sabe o período de declínio da desigualdade que experimentamos ao longo do século XX, que alguns de nós consideraram que duraria para sempre? Bem, ocorre que esse período foi, na verdade, uma exceção maior na história, e não uma norma.

Foi uma exceção porque a Grande Depressão e as duas guerras mundiais irromperam a ordem natural das coisas, criaram a necessidade do aumento de tributos, destruíram (na Europa) muito do capital físico, e deram espaço para a criação e o equilíbrio de um mercado de trabalho e de instituições políticas democráticas e, na deliciosa frase cunhada por John Maynard Keynes, “eutanasiaram a classe rentista”. Isso levou a um período estendido em que a taxa de crescimento econômico excedeu a de retorno de capital.

Mas esse período não existe mais e estamos retornando rapidamente aos níveis de desigualdade que não eram vistos desde o século XIX. Dada a improbabilidade de altas taxas de crescimento econômico voltarem, estamos condenados a uma desigualdade em espiral – a não ser que façamos algo a respeito.

O “algo” que devemos fazer, de acordo com Piketty, está ligado à taxação da riqueza global, uma ideia que ele admite ser “utópica”. Ele também tem a ver com um aumento acentuado nas taxas marginais de imposto de renda dos que ganham muito, que eu discuto aqui.

Alguns liberais conhecidos que leram o livro não estão apaixonados por ele. Eles o acham muito determinista, acreditam que a visão de Piketty é sombria demais. Mas, a não ser que você acredite que o crescimento às taxas antigas voltará – algo que até economistas tradicionais como Larry Summers vem pondo, afinal, em dúvida –, o argumento de Piketty é difícil de refutar.

Também é verdade que há aspectos importantes da desigualdade econômica que esse livro não aborda. Se você quiser entender a política econômica da desigualdade – como nosso sistema político permitiu a ascensão dos 1% - eu recomendo vivamente o livro de Jacob Hacker e Paul Pierson: Winner Take-All Politics [algo como: o vencedor leva vantagem em todas as políticas]. E se você quiser entender o efeito da desigualdade em nossos corpos e almas, então o livro de Göran Thersbon, The Killing Fields of Inequality [Os Campos Mortais da Desigualdade] é o livro para você.

Piketty vai além ao traçar a história da desigualdade econômica e ao analisar suas causas. Nesta resenha, Dean Baker tem um ponto excelente: que os impostos sobre a riqueza e a renda não são a única maneira de golpear os 1%. Ele menciona as correções ou ajustes propiciados por governos, como o enfraquecimento da legislação de patentes, em detrimento do interesse das megacorporações, a regulamentação dos monopólios de telecomunicação e rede a cabo e a instituição de tributos sobre transações financeiras, tudo isso também poderia ajudar a pôr rédeas na elite rentista. Essas reformas certamente ajudariam, e seriam muitíssimo mais realistas, do ponto de vista político, do que a taxação sobre a riqueza global, de Piketty. Mas nenhuma dessas medidas tem o potencial transformador daquele proposto por Piketty.

De acordo com ele, se ações políticas razoavelmente dramáticas não forem tomadas para reverter a desigualdade, teremos um sombrio e desigual futuro. Ele torna isso claro. As intervenções políticas que ele julga necessárias – uma taxa sobre a riqueza global, taxas marginais de imposto de renda que excedam 80% - vem sendo desprezadas por alguns. “É muito impraticável!”. Mas, como Adolph Reed e outros têm argumentado ultimamente, já passou há muito o tempo da esquerda americana começar a abraçar a utopia. Se não o fizermos, podemos bem estar nos condenando a um destino distópico.

Publicado originalmente no The Nation; tradução de Louise Antônia León.



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A campanha pelas TTF demanda uma taxa sobre as transações financeiras internacionais – mercados de câmbio, ações e derivativos. Com alíquotas menores que 1%, elas incidirão sobre um volume astronômico de recursos pois esses mercados giram trilhões de dólares por dia.

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